Mari Hirata na estrada de Cunha a Paraty

No tempo 1:04:54 eu apareço

Um dos atributos que eu mais admiro nas pessoas (e tento cultivar em mim mesmo) é a generosidade, mas não aquela do tipo financeira (que deixo bem claro, também acho importante e cultivo), mas aquela em que se da uma das coisas mais preciosas de nossas vidas: NOSSO TEMPO.

Se você é abonado e ajuda alguma causa financeiramente, vc não colocou sua “Neshama”(alma em hebraico), você esta fazendo justiça social (o que é muito bem vindo). Mas quando você dedica seu tempo a uma causa a coisa muda de figura. Saint Exupéry, no Pequeno Principe (que não é um livro só para crianças) diz: “O Essencial é invisível aos olhos e só se vê bem com o coração”.

No dia 30 de maio de 2021 faleceu em Tóquio, uma “Alma Generosa”, a nossa amiga Mari Hirata.

Luci e eu não sabíamos que ela estava em estado terminal, em cuidados paliativos de um Cancer de Pâncreas. Cerca de 10 dias antes de seu falecimento escrevi para ela pedindo uma receita para um novo Gadget Culinário que eu comprei (uma panela Misui-Kamado). Animada como sempre, ela respondeu em seguida, com várias receitas e dizendo que este equipamento era o “Sonho de Consumo” dela. Assim era a Mari, sempre compartilhando o que tinha de melhor e mais precioso.

Apesar de saber da existência dela há muito tempo eu a conheci pessoalmente em Tóquio em 2012, quando com o Gabriel (filho) e mais amigos queridos fomos acompanhar os jogos do Corinthians. O querido Jun Sakamoto fez a “ponte”entre nós e além de nos deliciarmos com ela de Cicerone tanto na parte Culinaria quanto Cultural assistimos o Timão ser Campeão.

Aula da Mari para os Corintianos em Tóquio 2012

Mari Hirata e a Mais-Mais no Metro em Toquio

Escrevo estas linhas com lagrimas nos olhos e dor no coração, mas com isto pelo menos eu consigo homenagear esta amiga.

Estou me baseando nas memórias que tenho das histórias, que ela me contou durante nossos encontros (creio que todos se lembram da frase dita no magnifico filme de John Ford “The Man Who Shot Liberty Valance”: “When the legend becomes fact, print the legend”.

A família da Mari, já era Católica no Japão (creio que eram da região de Nagasaki). Há um lindo filme de Martin Scorsese [Silêncio] que narra a evangelização do Japão) e emigraram para o Brasil devido questões religiosas.

Seu pai, João Sussumu Hirata (em geral os Nisseis e Sanseis tem um primeiro nome brasileiro e um segundo japonês, com o qual serão referidos em família), formado em Direito na USP, foi ao Japão estudar, porem com a eclosão da 2ª Guerra Mundial não pode retornar ao Brasil. Foi trabalhar como locutor na radio NHK, onde transmitia noticias em Português para o Brasil. https://pt.wikipedia.org/wiki/Sussumu_Hirata

Durante sua estadia no Japão, ele se casou com a Sra. Cecilia Mitsuko Hirata (que havia estudado no Colégio Sagrado Coração de Jesus de Tóquio, onde também estudou a Imperatriz Emérita do Japão: Michiko).

Muitos membros da comunidade Japonesa no Brasil não acreditaram que o Japão havia perdido a 2ª Guerra Mundial (houve uma organização secreta que perseguia quem divulgasse o contrário: https://pt.wikipedia.org/wiki/Shindo_Renmei

O Sr. Hirata retornou ao Brasil com uma missão do novo Governo do Japão de divulgar a realidade dos fatos, com isto passou a ser bem conhecido pela comunidade, o que lhe permitiu seguir uma carreira politica, tendo sido Deputado Estadual durante 1954 a 1962 e Deputado Federal de 1963 a 1974, quando faleceu em um acidente automobilístico, quando a Mari tinha 15 anos de idade (ela tinha mais 6 irmãos).

Vocês podem imaginar o tamanho da confusão e estresse. A família se mudou para mais próximo da USP, e teriam de frequentar uma Faculdade Pública. Para ajudar nas finanças familiares Mari passou a dar aulas de culinária para as amigas da mãe dela (Senhoras da Comunidade Japonesa) e daí vem seu envolvimento com a culinaria.

Mari estudou Comunicações na ECA-USP e trabalhava na diagramação do Jornal “O Trabalho”, de orientação Trotskista, e foi para Paris fazer um curso nesta sua área de atuação. Lá se especializou em Pâtisserie e quando voltou ao Brasil (´1983) foi trabalhar com isto em um renomado hotel de São Paulo (a Mais-Mais e eu passamos nossa noite de núpcias no mesmo). No entanto, seus doces franceses não faziam muito sucesso (o publico preferia doces brasileiros, como Quindim, Cocada e Pé de Moleque)

Na década de 1990 foi para o Japão e acabou indo trabalhar na tradicional Loja de Doces Japoneses Toraya (fundada no Século XVII e esta na 17ª geração na mesma família, sendo também os fornecedores oficiais da Família Real) https://global.toraya-group.co.jp/pages/toraya. Trata-se de um doce de feijão que se coloca na boca no ritual do Chá (minha avó Regina, que veio da Ucrânia tb adoçava o chá assim, em vez de colocar o açúcar na bebida, se coloca na boca e a bebida é adoçada ao passar pelo torrão. Estes doces são feitos de forma artesanal e cada uma tem uma imagem (minha compreensão é que há uma intenção de realização de um desejo, conforme o doce, por exemplo: Coelho seria para fertilidade).

Neste trabalho a Mari veio a conhecer seu esposo (Hisao Sato, que sempre foi um mistério para todos os muito amigos da Mari, creio que ninguém o conheceu pessoalmente). Na metade da década de 90 a Toraya resolveu abrir um Café em Pari e para lá foi o casal com seus dois filhos (Shohei e Anna). Ficaram por 6 anos em Paris e agora em situação financeira bem diferente. Mari pode verdadeiramente se dedicar a culinária, tendo cursado com brilhantismo a Le Cordon Bleu, trabalhou em diversos restaurantes, onde também aprendia novas técnicas

No inicio do novo milênio a família volta ao Japão e aí “nasce” a Mari que conhecemos, com suas diversas “apresentações” , por exemplo:

  1. Uma espécie de “Guia Culinária e Cultural”, onde recebia pequenos grupos, com os quais:
    1. Levar aos mais diversos restaurantes (estrelados ou não)
    2. Passear pelo Japão, mostrando aspectos que não seriam óbvio para um “Gaijin”
      1. Por exemplo: nas estações do Metro tem um aviso informando qual vagão vc deve ficar conforme seu destino. Digamos que você pegasse o Metro em SP para ir na Av. Paulista com R. da Consolação e você queira ir no Cine Belas Artes. Neste cartaz estaria escrito para pegar o vagão numero “X”.
Totem no Metro indicando em qual vagão você deve entrar

2. Ou te ensinar a pedir Ramen em uma maquina automatica

Maquina de pedir Ramen (restaurante Afori)

3) Ou te mostra um “locker” de Guarda-chuvas

Porta Guarda-Chuvas

4) Ou ainda te levar em uma Academia de Sumô e assistir a um treino

5) Ou ainda te proporcionar um dia MUITO ESPECIAL:

Ir ao mercado de peixe (Tsukiji) https://en.wikipedia.org/wiki/Tsukiji_fish_market


Mari e Mais-Mais no Mercado

Fazer Compras

As Compras
Ir para a casa da Mari

Passar o dia cozinhando com a Mari

Mais-Mais cozinhando na Casa da Mari em Tóqui
  1. Tinha vários grupos de alunos no Brasil (a Mais-Mais e eu éramos de um destes grupos)
  2. Tinha um grupo de alunas Japonesas (as quais se referia como as “pobrezinhas”)
  3. Fazia viagens com alguns grupos, para destinos especiais (Toscana, Provence, etc.). Nós tivemos o privilégio de fazer uma maravilhosa viagem pela Sicília e costa italiana com ela)
  4. Suporte para a Embaixada do Brasil no Japão (os cozinheiros lá são japoneses e vocês podem imaginar como é simples para eles fazerem pratos brasileiros)
  5. Anualmente ela vinha ao Brasil para o evento “Boa Mesa”

Minhas vivencias pessoais com a Mari:

  1. Jun Sakamoto sempre falava dela e quando fomos ao Japão ver o Corinthians ele fez a “ponte entre nós” (meu grupo dividiu o tempo dela com o Hilton Raw, grande amigo do Arnaldinho, irmão da Mais-Mais
Gabriel na aula de culinária da Mari em Tóquio

2. Escola da Wilma Kövesi (https://wkcozinha.com.br/)

Quando a Luci e eu casamos passamos a frequentar esta escola de Culinária, que tem sido uma das experiências mais enriquecedoras que temos. Quase todo ano havia uma aula da Mari

Exemplo de como era a aula da Mari

3. Aulas em casa: Num certo momento ela passou a vir uma vez por ano em casa e dava aula para algumas pessoas.

A Betty Knobel queria aprender a fazer pão (a Mari viajava levando com ela um fermento natural, que sempre dava de presente)
A Betty feliz da vida, com seu pão pronto
O Pargo cozido inteiro dentro do arroz

4. Viagem pela Itália.

Como já relatei acima fizemos uma volta da Sicília (e parte do litoral italiano) e onde estivéssemos a gente ia cedinho aos mercados, peixarias, etc. e comprávamos o “The Catch of the Day” e lá íamos nós para a cozinha. Foram duas semanas de puro deleite (eu sei que a gula é um pecado capital, mas foi SENSACIONAL)

Este é o peixe fito na Carta Fatta (uma espécie de papillote que suporta altas temperaturas)

5) Viagens ao Japão:

A. Viagem de 2012

Viagem de 2018:

A Mais-Mais não quis ir a Tóquio para ver o Corinthians e assim fiquei “devendo” a ela uma viagem, que foi feita em 2018 com todo estilo e uma boa parte guiada pela querida Mari

Eu no restaurante DEN https://www.jimbochoden.com/en/

Mais-Mais e Mari se deliciando

6) Ateliês Culinários em Paraty.

Você sabem que por mais de 30 anos tivemos uma casa em Paraty (vejam Post neste Blog sobre o tema: “Paraíso Perdido”)

Num certo momento a Mari topou passar alguns dias com um grupo seletos de amigos (muito interessados em culinária) em uma espécie de Retiro Gastronômico”. Lá no divertimos, contamos estórias, bebemos (não eu, que sou muito fraco), cozinhamos e comemos.

Nóis em Paraty
Ovas de Bacalhau sendo preparadas para misturar com uma massa
Eu tentando fazer Bagels (não saiu muito bom não)
Uma Pavlova (deliciosa)
Torta de Figos com creme de Pistachos
Nilzete e Mari preparando massa de Pizza
Mari tentando me ensinar algo e Julinho efetivamente fazendo algo
Nossa “Piece de Resistance” Pastrami feito de Wagyuy
Outra delicia: Sorvete de Jabuticaba
Mais-Mais não se aguentando após ter feito seu Rocambole
Mari e Nilzete preparando uma Caranguejada (recém catados nas pedras da casa de Paraty)
As Meninas
Final do Dia em Paraty
Dedicatória da Mari para a Mais-Mais e eu. Infelizmente o “ano que vem” não ocorreu. Snif, Snif, Snif
Eu e Mari na casa dela. Tenho pelo menos o privilégio de ter convivido com ela
Grafites de Chefes brasileiros no DEN: Rueda e Atala

https://braziljournal.com/memoria-mari-hirata-artesa-da-empatia-e-mestra-da-cozinha

9 Replies to “Mari Hirata – Uma despedida”

  1. História maravilhosa, me emocionei! Grandes amizades são assim, enriquecem os que se aproximam!

  2. Jairo querido, me emocionei com suas lembranças e seu carinho por essa amiga.
    Eu sempre digo aos meus netos que devem construir memórias ao longo da vida e irem guardando, pois quando forem mais velhos essas memórias serão um lindo livro que eles lerão com muita alegria e gratidão.
    Fico feliz por vocês terem tido essa amiga querida.
    Beijos

    1. Cecilia querida,
      Como diz a velha canção: “Recordar é Viver”, e já que estou nesta “vibe”, tenho de dar “Gracias a lá Vida”, que me ha dado tanto.

      bjs

  3. Bela História uma viagem ao longo da gastronomia , só de olhar e ler muita água na Boca.
    O melhor de tudo foi ver o Corinthians em Tóquio e comendo bem.
    Após a leitura percebe se a generosidade dela em se entregar atarvés da gastronomia.
    Muito bom poder viajar um pouco através da leitura .
    Grande abraço

  4. Agradecemos a você, Jairo, termos conhecido a Mari e desfrutado das inesquecíveis e preciosas experiências gastronômicas no Japão, além da convivência sempre prazeirosa.
    Linda homenagem, saborosas lembranças Luci e Jairo.
    Bjs, Ruth, Jefferson e Daniella

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