Creio que vcs sabem que além de medicina, eu cursei 3 anos de História da FFLHC-USP (e depois fiz especialização em Administração na FGV-SP) e gosto de juntar fatos não (aparentemente) relacionados e criar uma narrativa

Fiquei chocado com a fatalidade ocorrida em um set de filmagem nos EUA. Não é a primeira vez que isto ocorre nesta indústria muito rica, e portanto (pelo menos em teoria) com a capacidade de mitigar estes riscos.

Se compreendi direito o que ocorreu nesta morte acidental, havia uma bala de verdade, em vez de uma de festim, em uma arma cenográfica e o ator que fez o disparo teria sido informado que era bala de festim.

O mecanismo porque uma tragédia destas ocorre esta as nossas voltas, no nosso cotidiano, o tempo todo e creio que a maior parte das vezes nem percebemos, exemplos:

  1. Guardamos um produto tóxico em um recipiente que tem outro rotulo (e não o identificamos).
  2. Não verificamos o estado de conservação dos freios do carro antes de uma viagem

A atividade  humana mais complexa que existe é um Submarino Nuclear, onde  se estima ter cerca de 30.000 processos (atividades) ocorrendo e vcs podem imaginar o que pode ocorrer em falhas

A segunda atividade humana mais complexa é um Hospital do porte e complexidade do Einstein, que tem (ou tinha) pelo menos 15.000 processos internos  (lembrem-se da miríade de coisas que se faz dentro de um hospital: desde cabeleireiro a transplante multiórgãos).

Qualquer um que procura alguma unidade de assistência a saúde espera que todos os esforços tenham sido empreendidos para que nada de ruim lhe aconteça, mas como se consegue gerenciar uma atividade tão complexa?

Quando durante a gestão do Dr. Brandt na Presidência do Einstein, coube a mim a função de VP para a  qualidade médica.

Já haviam iniciativas de porte significativo, mas elas permitiam a coexistência de áreas de excelência com outras sofríveis.

No Brasil da época havia uma febre em relação a implementar regras ISO para tudo, e assim também ocorria no ambiente de saúde, porem tínhamos alguns problemas:

  1. Estas regras foram estabelecidas para um mundo industrial, onde se garantia que os produtos fabricados viessem sem defeitos.
    1. Se bem me lembro ela se iniciou na indústria bélica onde se precisava garantir que quando um canhão e seu projetil se encontrassem tudo desse certo (sem ter uma explosão)
  2. Tínhamos uma UTI ISO Certificada, mas convivia com uma lavanderia com processos bem precários.
  3. Mas o mais grave é que a estas regras ISO faltavam um valor ético ou moral, por exemplo o Campo de Extermínio de Auschwitz seria ISO certificável
    1. A quantidade de gás Zyclon B colocada nas câmaras era a definida
    2. O tempo de exposição ao agente tóxico era o predito
    3. Os fornos tinha a temperatura correta
    4. E assim por diante

Neste cenário fui a Chicago, convencer a Joint Commisssion https://www.jointcommission.org/  a avaliar as condições do Einstein usando suas regras (diferente da Certificação a Joint Commission tem um manual que é baseada na experiência de milhares de organizações em saúde e a cada advento adverso novo, este manual é aprimorado).

À época fomos reprovados em 14 das 15 macro funções que o manual deles contemplava e a Diretoria da época aprovou corajosamente que em tempo rápido a instituição estivesse sem “Não conformidades”. Num esforço sobre-humano uma maravilhosa equipe conseguiu que em dois anos estivéssemos de acordo com as diretrizes da Joint Commission e o Einstein se tornou o primeiro Hospital fora dos EUA Acreditado pela Joint Commission. Em 2021 tivemos a 7ª re-acreditação com um índice de mais de 97% de conformidades.

A direção do Einstein manteve e aprimorou muito estas bases, que seguramente tem uma grande importância no papel que o Einstein tem hoje no cenário de saúde nacional.

Para se conseguir este aprimoramento da qualidade, cada processo assistencial precisou ser “dissecado”, analisado, detectado suas potenciais falhas e serem redesenhados

Antes de prosseguir preciso deixar  BEM claro:

  1. Uso dados que tenho em minha memória, da época em que liderava este processo (portanto peço tolerância comigo)
  2. O que relato abaixo foram os esforços para se aprimorar um processo assistencial e evitar que um dano ocorresse a um paciente, isto é, NÃO HOUVE NENHUM ADVENTO ADVERSO aos pacientes (este processo se deu em um processo de melhoria das qualidade)

Vou usar como exemplo a transfusão de sangue:

1.            Eventualmente vocês não tenham atinado, mas é a mais antiga (o relato mais antigo que encontrei é de 1795), mais frequente e de melhor resultado forma de transplante de órgãos que se pratica

2.            Uma das etapas críticas deste ato médico é garantir que a bolsa de sangue certa esteja sendo administrada ao paciente certo (as consequências de uma incompatibilidade sanguínea podem ser catastróficas)

3.            Foi estabelecida uma Comissão de Qualidade em  transfusão de sangue e hemoderivados.

A. Após muito estudo e deliberações, foram estabelecidas regras para uso de hemoderivados (isto levou o Einstein a ser, se não me falha a memória, o primeiro Banco de Sangue acreditado pela American Blood Bank Association, fora dos EUA)

   B. Conseguimos uma excelente aderência aos protocolos estabelecidos (precisam ter em mente que no campo da saúde há uma cultura interna de se fazer o bem e cada vez melhor)

     C. O processo que nos deu mais trabalho foi a de administração de hemoderivados no durante cirurgias, vou tentar explicar:

i.  Nas alas de internação uma enfermeira qualificada, verificava a identidade do paciente, na frente do mesmo ou de um familiar e confrontava com o estava escrito na bolsa do derivado a ser infundido (lembrem-se que na época não haviam estes “Scanners” manuais e computadorizados).

ii.  Hemoderivados são bens MUITO escassos e MUITO perecíveis, isto é, há uma degradação de sua qualidade e risco de proliferação bacteriana quando fica fora das condições de armazenamento

iii. No Centro Cirúrgico a realidade é diferente:

1. Na maior parte das vezes um cirurgião informa que na cirurgia que vai realizar há possibilidade da necessidade de sangue

2.  O Banco de Sangue se prepara para isto:

a. Faz testes de compatibilidade

b. Faz reserva das bolsas de derivados requeridas (na sua falta se cancela a realização da cirurgia

c.  No horário previsto estas bolsas de derivados eram entregues ao Centro Cirúrgico, em conservadoras com temperatura regulada e sensores e alarmes

3.  Agora vem o perigo:

a.  No Einstein ocorrem mais de 100 cirurgias diferentes por dia, em dois centro cirúrgicos diferentes e em muitas delas há uma reserva de um hemoderivado

b. Portanto várias bolsas de derivados, destinadas a pacientes diferente,  são entregues na Secretaria do Centro Cirúrgico (explicando: para minimizar o risco de infecção é limitado o acesso ao Centro Cirúrgico).

c.  O protocolo existente a época era aproximadamente assim:

i. O portador da referida bolsa a entregava na secretaria do Centro Cirúrgico e ambos rubricavam uma ficha confirmando a exatidão dos dados

ii. Um profissional de enfermagem transportava da referida bolsa da Secretaria e a entregava a enfermagem da sala cirúrgica. Os 3 rubricariam a ficha

iii. Em sendo necessária a infusão do hemoderivado, a enfermagem da Sala Cirúrgica entregava ao Médico anestesista que fazia a infusão endovenosa (novamente duas assinaturas)

4. Se estivéssemos seguros que esta processo daria certo obviamente eu não estaria escrevendo este texto. Então vem a pergunta, como um processo tão bem controlado e documentado pode vir a dar errado?

a.  É simples:

b.  Quanto mais etapas de controle vc coloca em um processo, maior a chance de ocorrer um erro, pois todos assumem que tudo foi bem feito nas etapas anteriores e por confiança não faz a sua verificação (vale a pena lembrar que o ambiente de um centro cirúrgico é MUITO estressante e inúmeros processos estão ocorrendo de forma simultânea e o controle de uma bolsa de hemoderivado é só mais uma coisa a ser feita

c.  A solução (tipo ovo de Colombo) passou a ter só uma etapa. O médico anestesista, que vai instalar a infusão passou a ser o único responsável pela conformidade no seguimento das regras.

O processo assistencial TEM que funcionar como uma corrida de revezamento, onde além de um corredor fazer bem a sua parte, ele TEM QUE ENTREGAR O BASTÃO DA FORMA CORRETA.

Estes processos sofrem muitas vezes de uma fragmentação (múltiplas etapas) e da falta de um dono do processo (“Ownership”)

Possivelmente no Set de filmagem ocorreu algo como relatado acima: “Fragmentação do processo e falta de Ownership do mesmo”.

Tenho uma duvida se este papel caberia a Alec Baldwin (que usando o modelo do Centro Cirúrgico seria o Cirurgião) ou ao “Handler”, que lhe entregou a arma (seria o anestesista).

Minha historiadora predileta (Barbara Tuchmann) em seu magnifico livro “The March os Follies” https://mostlykind.com/a-marcha-da-insensatez-barbara-tuchman/      diz que cada uma de nós deve analisar sua vida e perceber se não esta na “Marcha da Insensatez”. Este tiro fatal me parece ter sido uma tragédia previsível e evitável

Existe uma ciência de avaliação destas não conformidades (a que eu apreendi é a “Deep Root Cause Analyisis”ou Avaliação de “Causa Raiz”). Este campo de conhecimento, segundo o que eu sei, foi criada por Sir. Winston Churchill.

Durante a II Guerra mundial a Inglaterra desenvolveu o motor de avião a Jato (não é a toa que a Rolls Royce seja uma das principais fornecedoras destas turbinas). O Reino Unido terminou a guerra exaurido financeiramente e uma das suas oportunidades de recuperação era a criação da aviação comercial a jato.

Assim foi feito, a Inglaterra criou o primeiro jato comercial do mundo, o Comet, mas infelizmente houve uma serie de acidentes graves que tiraram a confiança do Publico.

Churchill, que em 1950 volta ser Primeiro Ministro, manda tirar do fundo do mar os escombros de um destes aviões acidentados, para uma analise da “Causa Raiz”.

Este avião, para tornar a experiencia do passageiro mais agradável, tinha enormes janelas, e isto se revelou como uma fraqueza estrutural e a fuselagem da aeronave não resistiu e se rompeu. https://www.fzt.haw-hamburg.de/pers/Scholz/dglr/hh/text_2019_01_24_Comet.pdf

Uma parte importante das atividades humanas são coisas de “risco” e nestes a segurança tem que ser mais importante do que a “experiência”. Se puder ter as duas coisas, ótimo, mas se tiver de fazer uma opção é obvio qual deve ser a escolha.

Assim no meu entender, após este evento trágico, cada um de nós deve refletir que coisa a seu redor pode ser aprimorada, para que um evento adverso não venha a ocorrer, esta deve ser a maneira de se homenagear a memoria de Halyna.

Halyna

11 Replies to “O Acidente envolvendo Alec Baldwin e a Segurança no Ambiente Hospitalar”

    1. Daysinha que bom ter noticias suas (vc bem sabe minha ligação e paixão pela sua familia)

      Obrigado por se manifestar

  1. Jairo, mais uma vez, você transforma o conjunto enorme de informações, que só caberiam em uma mente privilegiada e dona de uma memória espetacular.
    A conclusão é de que, apesar de checarmos mos os equipamentos exaustivamente, sempre estaremos expostos aos erros ou falhas humanas.
    Para nós que somos cirurgiões, este sentimento é sempre presente, pois sabemos que uma desatenção do anestesista, cirurgião principal e assistentes, a qualquer altura do procedimento, podem conter erros inesperados. ( essa é a desculpa para a irritadiça postura dos cirurgiões em seu trabalho).
    A sua explicação dos processos de erros é fantástica.
    Obrigado pelo seu raciocínio.
    Um grande abraço, meu irmão de
    alma.

    1. Rolf querido,

      Obrigado pela resposta, mas vc esta em “prejudice” para analisar isto, pois:

      1) Vc é um amigo querido
      2) Vc presidia a Comissão de Qualidade em Hemoterapia, qdo o que eu descrevo ocorreu

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *