Vários devem se perguntar o porquê de levantar este tema, quase 80 anos após o final da 2ª Guerra Mundial, quando acreditamos que isto foi uma coisa do passado e que não mais se repetirá.

A reposta não é agradável para nós que atuamos na área da Saúde. Os médicos foram a categoria profissional com maior adesão ao Nazismo e mais da metade dos médios alemães eram membros do Partido. Muitos de nós acreditam que as atrocidades cometidas pelos médicos se restringiram aos experimentos em Campos de Concentração (como no caso de Mengele). Mas não, a quantidade barbáries praticadas por pessoas com mais alto grau de educação é incalculável, a ponto que que no Tribunal de Crimes de Guerra de Nuremberg houve um julgamento específico para os médicos, com sete deles sendo condenados à morte por enforcamento

As atrocidades cometidas por médicos nazistas incluíram:

  • Uso de Radiologia para detectar Poloneses com tuberculose e encaminhá-los para morte.
  • Esterilização forçada em cerca de 1.00 por aplicação de Raio X nos ovários e testículos. Depois retiravam estes órgãos sem anestesia.
  • Pelo menos 10.000 pessoas com desabilidades foram assassinadas por injeções letais.
  • Na chegada dos trens aos campos de extermínio, os médicos selecionavam quem viveria ou morreria.
  • Os infindáveis relatos de experimentação com os prisioneiros dos campos, por exemplo:
    • Os Nazistas queriam saber por quanto tempo valeria ir procurar um piloto de guerra que tenha caído nas águas geladas do Atlântico Norte.
    • Colocavam prisioneiros nus, em água gelada e esperavam para ver o que acontecia.
    • No entanto havia um erro de desenho neste estudo:
      • Os pilotos eram bem nutridos e estavam vestidos
      • Os prisioneiros, por sua vez, eram desnutridos, estavam nus, e possivelmente com várias doenças que ocorriam nos campos (Tifo, tuberculose etc.). Portanto não serviam como grupo de comparação.

Apenas como referência:

  • Wegener, aquele da Granulomatose, era um notório nazista
  • Reiter, o da artrite, era ardente seguidor das doutrinas nazistas.
  • Mas o caso mais notório que conheço é o de Eduard Pernkopf:
    • Em 1933 se torna professor de anatomia da Universidade de Viena e se filia ao Partido Nazista (sendo nada menos que um Sturmabteilung ou SA ou Brown Shirt, o grupo paramilitar que entre coisas foi responsável pela Noite de Cristais em novembro de 1938).
    • Em 1938, após a Anschluss (anexação da Áustria) se torna Diretor da Faculdade de Medicina de Viena e em seguida demite 153 dos 197 professores desta emérita faculdade, por serem judeus.
    • Isto não é nada, Pernkopf editou um Atlas de Anatomia, usado até hoje, que foi criado a partir de 8.000 corpos de pessoas assassinadas pelo regime nazista e cujos corpos foram “doados” a este médico para seus “estudos”. Vejam o desenhista assinando com a suástica.

Mas volto a pergunta inicial, o que isto tem a ver com os tempos atuais?

Porque ao longo da história (inclusive bem recente) os profissionais de saúde estiveram envolvidos com coisas inomináveis e parece ser algo que se repete. Seguem apenas alguns exemplos:

  1. Na operação Condor (aquela em que prisioneiros políticos eram atirados ao mar a partir de aviões em grande altitude). Os prisioneiros eram sedados por médicos
  2. Há inúmeros relatos de que durante as Ditaduras Militares que aconteceram em vários locais do mundo, em sessões de tortura, havia médicos para averiguar se os prisioneiros estavam em condições de prosseguirem no seu “interrogatório”
  3. Na famigerada base de Guantánamo, onde durante a chamadas “Guerra contra o terror” os prisioneiros eram “interrogados” por uma técnica chamada Board Washing, supervisionada por médicos
  4. Comportamento de muitos profissionais da saúde durante a pandemia de Covid
  5. A situação dos Yanomamis (apesar de ser uma questão imputável a Sociedade como um todo).

No entanto se acompanharem nos noticiários há um razoável número atrocidades cometidas por profissionais da saúde, que demonstra alguma falha na formação ou controle desta atividade, novamente cito exemplos:

  • Alguns profissionais anestesistas com abusos na esfera sexual
  • Um médico vereador no RJ acusado de ter matado o enteado.
  • Hosmany Ramos: Cirurgião plástico que se tornou criminoso
  • O conhecido caso de um profissional da área de infertilidade
  •  Várias denúncias de comportamento inapropriado de profissionais de saúde (não sou de julgar ninguém)

Será que existem caminhos que podem levar a repetição de tantas maldades?

 Vários estudos sugerem que sim, existem condicionantes que podem “despertar” o monstro que habita em cada um de nós (profissionais de saúde ou não). Cito alguns:

  • Pessoas que tem tendencia de obediência a autoridade, podendo incluir:
    • Torcedores de um time de futebol     
    • Um grupo organizado que tenha capacidade de exercer da força, podendo ser
      • Organizado pelo Estado: como os militares
      • Fora do aparato oficial: Milicias
  • Um Gatilho, que de o “Start”:
    • Uma humilhação
    • Uma crise econômica ou social (isto que permitiu a ascensão do Nazismo)
  • Uma minoria que seja desumanizada (despida de sua condição de individuo)
    • Vão ser tratadas como se fossem vermes, micróbios, ou coisas piores
    • No passado já foram (e ainda o são) incluídos (a lista é infindável):
      • Ciganos
      • Testemunha de Jeová
      • Homossexuais
      • Judeus
      • Hoje são os Yanomamis
  • Um líder demagógico e imbuído do mal
  • O Silencio ou inação das pessoas do bem

Ennio Flaiano (escreveu os roteiros dos filmes de Felini)

“Quando eu era jovem eu acreditava que o oposto de uma Verdade era uma mentira, e que o oposto de uma mentira seria necessariamente uma Verdade
Agora que sou mais velho, estou começando a compreender que o oposto de uma verdade, pode ser uma outra verdade, e que o oposto de uma mentira, pode ser uma outra mentira.”

Por que profissionais de saúde estão em risco maior de cometerem estas barbáries?

  • Porque exercemos autoritarismo
  • Porque muitos de nós ainda praticam o que se chama de “Medicina Paternalista (o paciente não sabe nada e o profissional decide por ele), em detrimento a “Medicina Autônoma” (a decisão está com o paciente).
  • Porque em geral temos posições conservadoras.
  • Gradualmente temos menor empatia pelos problemas dos outros.
  • Não toleramos ambiguidades ou incertezas.

Nós, profissionais da área da saúde temos algumas peculiaridades em nossas personalidades e na nossa formação que podem permitir que comportamentos inadequados se manifestem

Tendemos a ficar ansiosos quando confrontados com as inevitáveis incertezas da prática assistencial.

Esta intolerância a ambiguidade é maior em Internistas, do que em Médicos de Família, em médicos jovens, do gênero masculino e naqueles que sua formação inicial em ciências exatas do que aqueles que tem formação nas ciências humanas.

Esta intolerância a incertezas ou ambiguidades vem piorando nas últimas décadas (isto é, estamos, como um grupo, nos tornando mais intolerantes).

Intolerância a ambiguidade pode afetar a escolha de carreira, sendo que aqueles mais intolerantes têm a tendencia a escolher fazer Residência em Anestesia, Cirurgia ou Radiologia, e aqueles com mais tolerância tendem a fazer Clínica Médica, Pediatria, Psiquiatria

O processo de escolha de uma especialidade em grande parte esta relacionada a sua capacidade de lidar com ambiguidades. Aqueles que lidam mal com as incertezas, tenderão a escolher as carreias que tem mais “certezas”

Incapacidade de lidar com incertezas pode levar a atitudes negativas em relação a pacientes com queixas de difícil solução, como: Dor crônica, ou abuso de drogas

Por fim, intolerância a ambiguidade pode levar a se pedir mais exames laboratoriais, com suas implicações em custo maior, e maior risco de complicações.

Algumas Escolas de Medicina (como na do caso do Einstein) estão incluindo no seu processo de vestibular mecanismos de seleção de candidatos que sejam: mais humanos e mais tolerantes (fora o fato que no caso do Einstein há um enorme enfoque em ciências humanas).

Sir William Osler (um dos Gigantes da Medicina) escreveu sobre a medicina:

“A distressing feature in the life of which you are about to enter… is the uncertainty which pertains not alone our science and art, but also to the very hopes and fears which make us men.
In seeking out the absolute Truth we aim the unattainable, and must be content with finding broken portions”

Intolerância a Ambiguidade:

Indivíduos que são intolerantes a ambiguidade tendem a enxergar o mundo em Branco e Preto absolutos

Pessoas que toleram ambiguidade são, por sua vez, mais receptivos a novas ideias, conseguem ver diferentes perspectivas e em geral lidam melhor com situações difíceis.

Tolerância a ambiguidade é uma característica desejável aos profissionais de saúde, mas é um atributo que anda em falta nesta (e em outras) profissões.

René Descartes em 1637 escreveu seu famoso livro “Discours de la méthode” e nele está escrito:

“O bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída: todos pensamos tê-lo em tal medida que até os mais difíceis de contentar nas outras coisas não costumam desejar mais bom senso do que aquele que têm.”

Theodor W. Adorno um dos expoentes da Escola Filosófica de Frankfurt    escreveu:

“Intolerance of Ambiguity is the mark of an authoritarian Personality”-
“An authoritarian personality was first described by Adorno as one characterized by dogmatic beliefs, a hierarchical orientation in interpersonal relationships, significant distrust and suspicion, manipulation in relationships with others, and the pursuit of material rather social values
In Adorno’s original study this was quantifies by the “Adorno F Scale”, which was found to correlate with the Antisemitic scale”

Estas peculiaridades de personalidade ajudam a explicar por que a Medicina foi a mais Nazificada na Alemanha (mais de 50% dos médicos eram membros do partido)

Alguns dados demográficos sobre autoritarismo entre Médicos:

Merril constatou que 19% dos mais de 2.00 alunos de medicina na Baylor University eram autoritários (bem mais do que nos estudantes de Direito).

O Grau de autoritarismo aumenta durante os anos acadêmicos, sendo que nos formando chega a 30%.

Mulheres em um escore de autoritarismo menor do que homens, mas neste grupo houve (durante os anos acadêmicos) um aumento muito mais acentuado.

Altos escores em autoritarismo prediz uma escolha de especialização nas áreas de: Cirurgia, Anestesia, Radiologia ou Patologia.

Os alunos menos autoritários, por outro lado, escolhem residências em Psiquiatria, Pediatria, Clínica Médica, ou Medicina de Família.

Karl Jaspers (que não era judeu) escreveu um livro memorável chamado “The Question of German Guilt” e nele está dito:

“That which has happened is a warning.
To forget it is guilt.
It must be continually remembered.
It was possible for this to happen, and it remains possible for it to happen again in any minute.
Only in knowledge can be prevented.”

Existem cursos alternativos a serem seguidos? Lembrem-se eu sou um eterno otimista e, portanto, a reposta é sim.

Um dos meus heróis é Albert Schweitzer:

  • Nascido em 1875, na Alsácia (virá a ser Tio-Avô de Sartre). Passou a Primeira Guerra Mundial prisioneiro em um Campo de Concentração.  Formado em Teologia e Filosofia, foi um dos mais renomados organistas (sua especialidade era Bach).
  • Aos 33 anos, no auge das atrocidades cometidas no Congo (uma propriedade privada do Rei Leopoldo II. Leiam “A Heart in the Darkness” de Joseph Conrad, ou assistam “Apocalipse Now”, que apesar de ocorrer no Vietnã, o roteiro é o livro de Conrad), decide estudar medicina e cria um hospital em Lambaréné, à época uma Colônia Francesa na Africa (hoje no Gabão). Entre outras coisas dava concertos pelo mundo para angariar fundos para seu hospital. Em 1952 foi laureado com o Prêmio Nobel da Paz

Take Home Message:

  • Não siga as ideias da “Turma”. Be a Party of one
  • When the pyres go up, always side with the Witches
  • And when the beast finally ears its ugly head again (which it will, since “being human nature what it is, events of the past will sooner or later repeat themselves”) try to find the moral courage:
    • Not to be a perpetrator
    • Not to be the victim
    • Not to be a bystander
    • But instead to be a resister and a rescuer

Os atributos descritos neste texto, que eventualmente levem a comportamentos reprováveis, existem na humanidade como um todo (não são exclusividade de nenhum grupo profissional, étnico, religioso ou outros), basta ver o ocorrido na Pandemia de Covid. No entanto, me parece que a “Sociedade” tem uma expectativa de um padrão ético e moral mais elevado em algumas categorias, que incluem (mas não só estes): Educadores; Religiosos e Profissionais da Saúde.

Martin Luther King

“In the end, we must learn to live together as brothers, or perish together as fools.”

Hoje, dia 27 de janeiro é o dia em que o Campo de Extermínio de Auschwitz foi liberado pelo Exército Russo e a humanidade foi exposta a capacidade que tem de cometer barbáries. Celebra-se hoje o Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto. Me inspirei para escrever este texto em uma das palestras daquele que considero o melhor Professor de Medicina que conheci, Salvatore Mangione

Alguns textos que podem enriquecer a leitura

https://journals.lww.com/academicmedicine/Fulltext/2015/06000/Contemplating_Medicine_During_the_Third_Reich_.24.aspx

https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_Nazi_doctors

https://journals.lww.com/academicmedicine/fulltext/2013/05000/tolerance_for_ambiguity__an_ethics_based_criterion.16.aspx

https://portugues.medscape.com/slideshow/65000112#1

https://www.spectator.co.uk/article/we-must-remember-the-unique-atrocity-of-the-holocaust/

https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1111/j.1365-2923.1994.tb02719.x

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